Roberto, meu irmão do meio, e eu temos grande curiosidade por assuntos que nada têm a ver com nossas profissões, medicina e odontologia, respectivamente. Rimos muito quando falamos da nossa mais nova moda em questão de conhecimentos inúteis – é assim que os chamamos --, e sempre fazemos questão de lembrar, com orgulho, que herdamos esta característica do papai: um curioso de carteirinha.
A minha lista dos últimos anos inclui os temas mais díspares: filosofia, matemática, física, psicologia comportamental e cognitiva, felicidade: sob a ótica da filosofia e da psicologia positiva (esta custou-me 12 meses e mais de R$5.000,00 em 2005), teoria da evolução, neurociência, genética, máximas, auto-ajuda, do-in e mais outras coisinhas aparentemente prescindíveis. No entanto, tenho aprendido grandes lições e as aplicado na vida, estudando estes assuntos.
Nos últimos meses, resolvi que tinha de aprender a fazer boas massas de quiche e de torta salgada. Não ria, mas estou hoje exatamente com 19 massas testadas!!! Obtive quatro massas excelentes: duas de quiche e duas de torta salgada, e 15 belas porcarias! Então decidi usar a matemática para compreender o que fazia uma boa massa. Somei, subtraí, dividi, multipliquei, usei proporção, regra de três e... nada!
Foi quando lembrei que, em 1996, comprei o livro Um Cientista na Cozinha, do francês Hervé This, que à época serviu-me apenas para satisfazer a curiosidade. Pois não é que lá estavam os segredos -- que o “animal” aqui tentou desvendar gastando seus dois neurônios (o tico e o teco) com operações matemáticas! --, cujo mistério se encontrava na química e física, e nada tinha a ver com Pitágoras.
Depois dos prolegômenos (crise de intelectualidade, pode ter certeza!), vamos ao que interessa. Tentarei simplificar ao máximo a explicação das causas científicas que nos levam a obter uma massa de torta/quiche boa (macia) ou ruim (dura), segundo o livro Um Cientista na Cozinha*:
1. As massas de torta/quiche são feitas basicamente com farinha de trigo, gordura e água (ou leite);
4. Quando se acrescenta manteiga (ou outra gordura: margarina, banha etc) e água à farinha, os grãos de amido ficam envolvidos pela manteiga, portanto separados uns dos outros. A água e a farinha ainda vão formar uma goma (ligação por atração entre os grãos), mas a manteiga separa as gomas individuais não deixando que haja uma forte ligação entre elas e, consequentemente, a massa fica mais mole, mais flexível (lado dir. da foto 2).
Quando se leva esta massa ao forno, a água gradativamente se evapora, mas como as gomas individuais ficaram separadas pela manteiga, ela se torna quebradiça, isto é, não deixa formar o bloco duro de goma resultante da união forte de todos os grãos amido da massa.
Após assada e fria, a massa continua quebradiça (por isto chamada de massa quebrada ou podre) porque a união entre as gomas individuais é feita pela manteiga solidificada, um tipo de ligação ou união muito fraca;
5. Ao terminarmos de fazer uma massa para torta/quiche, a qual leva manteiga e água (ou leite), devemos deixá-la repousar por um motivo muito simples: para permitir que a água migre entre os grãos de amido, e então penetre neles para formar diversas gomas individuais antes de ir para o forno e para fazer os grãos incharem quando receberem o calor do forno. Lembre-se: a manteiga que você colocou está envolvendo todos os grãos de amido, dificultando a penetração da água nestes grãos. Assim, faz-se necessário dar um tempo para a água ultrapassar a barreira de manteiga e penetrar nos grãos: que é o tal descanso ou repouso da massa tão aconselhado nas receitas.
Obs.: Ele não fala nada sobre a necessidade de pôr a massa na geladeira durante o descanso, recomendação que vemos frequentemente nas receitas, nem sobre quanto tempo de repouso ou descanso é preciso.
6. Devemos nos lembrar que a farinha também contém glúten, uma proteína que é ávida por água e que, na sua presença, forma uma rede superdura, embora elástica. Estas redes são criadas quando a massa é sovada. Quanto mais sovada for uma massa, mais dura ela ficará porque o glúten se coagula e forma as tais redes elásticas e duras.
Se você quer uma massa de torta supermacia e quebradiça, primeiro misture bem a farinha de trigo e a manteiga, envolvendo completamente os grãos de amido com esta gordura, e só depois acrescente a água e os outros ingredientes. Como os grãos de amido ficarão envolvidos pela manteiga, a entrada da água será dificultada, formando apenas as gomas necessárias. Se o amassamento for limitado (só o suficiente para misturar os ingredientes), não se criarão as redes de glúten, as quais fariam a massa de torta ficar dura. Lembre-se: sovar endurece a massa. Daí por que nas massas quebradas ou podres recomenda-se amassar delicadamente os ingredientes com as pontas dedos, isto é, não sová-las.
RESUMO:
1) Massa de torta/quiche supermacia e quebradiça obtém-se misturando primeiro a farinha de trigo e a manteiga (ou outra gordura) e só depois adicionando a água e os outros ingredientes. Por quê? Porque os grãos de amido envolvidos pela manteiga, quando entrarem em contato com a água, formarão somente gomas individuais, as quais não poderão se ligar fortemente -- criando uma massa dura durante o cozimento --, porque a manteiga impede essa ligação.
2)Deve-se deixar repousar a massa para que a água migre entre os grãos de amido e depois penetre nos mesmos, de modo a poder formar-se uma goma a frio e também para poder inchá-los durante o cozimento. Este processo demora porque a manteiga dificulta a passagem da água.
3) Para a massa ficar macia e quebradiça, amasse delicadamente com as pontas dos dedos, evitando sová-la, pois sovar faz o glúten coagular e formar redes duras e elásticas que enrijecem a massa.
4) Conclusão: o modo de fazer uma massa de torta/quiche é fator determinante na qualidade final da mesma.
Como sou igual a São Tomé, que só acredito vendo, testei a massa do Quiche de Palmito, Presunto e Mussarela fazendo-a de duas maneiras:
1ª maneira: colocando todos os ingredientes numa tigela, manipulando delicadamente com as pontas dos dedos, embrulhando em saco plástico hermético e deixando descansar 30 minutos na geladeira. Afinal, abrindo com rolo e assando em forno pré-aquecido a 235º por 2o minutos.
2ª maneira: colocando primeiramente a farinha de trigo e a manteiga numa tigela, misturando-as bem até obter uma farofa e só então acrescentando os outros ingredientes. No resto, fiz tudo igual ao da primeira maneira.
RESULTADO: A massa feita da 2ª maneira ficou muito mais macia que a feita da primeira maneira, o que significa que o dr. Hervé This realmente está certo, e que a maneira de fazer uma massa influencia diretamente na qualidade final da mesma.
-- Nasci professora, nasci para aprender e ensinar. Se você aprendeu algo com este post, minha gratificação será imensa. Se quiser algum esclarecimento, estou à sua disposição e o farei com o coração cheio de alegria.
Um grande abraço, Laura Lucia
Obs.: Sou totalmente responsável pela interpretação livre que dei a este capítulo do livro e por alguns enxertos que fiz, assumindo todo e qualquer erro a este respeito.
*Livro: Um Cientista na Cozinha, ed. Ática, 1996, p. 171-176
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